Lugar de escrita e primeiros leitores
a. A tradição
O
livro não menciona diretamente nenhum lugar de composição, mas já ouvimos que a
tradição quanto a autor e destinatários aponta inconteste para Roma. Só uma voz
tardia e isolada propõe Alexandria no Egito. Supunha-se uma atuação de Marcos
no Egito (cf 2e). Disto Crisóstomo, por volta de 390, parece ter concluído
inadvertidamente que Marcos também compôs ali seu evangelho. Portanto, ficamos
com Roma, já que vimos que o testemunho interno do livro não se opõe a isto (cf
2d).
b. Suposições mais recentes
Na
medida em que a pesquisa atual não segue a tradição, ela deixa esta questão em
aberto (Bornkamm) ou tende a imaginar alguma cidade do Oriente do Império como
lugar de escrita. (Kümmerl (p 55) acha que a composição em uma cidade “do
Oriente é muito provável”. Schmithals (p 61): “… antes no Oriente”. Schreiber
se decide pela Síria. Pontos de referência concretos para estas afirmações
inexistem. Marxsen, um célebre pesquisador de Marcos, arriscou-se bastante
nesta questão em 1959 e sugeriu a redação na Galiléia, sem, porém, angariar
apoio. Que sentido, então, teriam esclarecimentos como o de 7.3s? À redação no
contexto aramaico já se opõe a tradução de termos para o grego ou até para o
latim. De qualquer forma já é estranho que o registro da tradição de Jesus se
mostrasse necessária primeiro na Palestina. Com certeza ali as lembranças
pessoais de Jesus eram mais intensas, e a tradição oral bem mais desenvolvida
do que na distante Roma pagã.
Portanto,
tudo favorece a tradição antiga. “Não há nenhum argumento sólido contra a
tradição que diz que o evangelho foi escrito em Roma”, dizia Harnack já no
começo do século. Pesch descobre, duas gerações de pesquisadores depois: “Não
há nada contra a origem romana do evangelho de Marcos”.
c. A situação geral na Roma do
século I
Quando
o imperador Augusto morreu no começo do século (ano 14), ele tinha deixado Roma
esplêndida. Ele “embelezou tanto a capital, que podia realmente gabar-se de ter
encontrado uma cidade de barro e feito dela uma cidade de mármore”, relata um
historiador romano.
A
cidade, de um milhão de habitantes, hospedava um misto colorido de povos,
línguas, culturas e religiões. O empurra-empurra nas ruas era tanto que só se
permitia o tráfego de carroças à noite. O porto de Roma, Óstia, tornou-se o
centro do comércio mundial. O panorama da cidade estava semeado de construções
públicas de primeira. As casas particulares não ficavam para trás. Nas casas de
banhos dos patrícios, a água corria de canos de prata para banheiras de
mármore, espelhos de metal enfeitavam as paredes, instalações de ar quente
aqueciam o ambiente. As paredes das residências estavam cobertas de tapeçarias
caras, os assoalhos de mosaicos, os tetos de lambris. O desperdício nos banquetes
praticamente não tinha limites. Não faz sentido nem mesmo começar a alistar o
que havia de pratos exóticos. Providenciava-se música ao vivo para as
refeições, e serenatas. Havia vezes em que flores choviam do teto, outras em
que dançarinas se apresentavam.
É
claro que tudo isto tinha seu lado escuro: as favelas dos pobres, sem os quais
esta civilização não poderia existir, e os navios, impulsionados por escravos
cheios de desespero e ódio, que diariamente reabasteciam os portos de produtos.
O retrato em cores berrantes da derrocada moral do século I temos graças ao
escritor romano Tácito: crise econômica, corrupção, anarquia total,
apodrecimento da sociedade e um clima geral de decadência. Todos conhecemos a
expressão de perplexidade: “Isto aqui parece a Roma antiga!”
A
ética do trabalho estava ausente quase de todo. Milhares viviam de subsídios do
Estado. Durante o dia matavam o tempo. O ponto alto da sua existência triste
era a vida noturna. Iam para orgias com a intenção de se embebedarem. O resultado
geralmente era um carnaval absurdo pelas ruas noturnas, farras em bordéis,
cenas de ciúmes, brigas e ressacas. Assim Roma se encaminhava inconscientemente
para o dia do juízo de Deus. Contra este pano de fundo pode-se ler p. ex. Rm
13.11-14: “Digo isto a vós outros que conheceis o tempo: já é hora de vos
despertardes do sono; porque a nossa salvação está, agora, mais perto do quando
no princípio cremos. Vai alta a noite, e vem chegando o dia. Deixemos, pois, as
obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz. Andemos dignamente, como em
pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em
contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo.” Com uma força de
irradiação impressionante, como um sol de graça, verdade e justiça, Cristo
tinha nascido no horizonte destas pessoas. Principalmente para esta igreja é
que Marcos também escreve.
d. A comunidade judaica em Roma
Tratamos
da comunidade judaica porque ela, como em todo o Império, faz parte do contexto
histórico anterior à igreja.
Na
Bíblia lemos já em At 2.10 que havia judeus morando em Roma. A informação mais
antiga sobre vida judaica na capital remonta ao ano 139 a.C. Calcula-se que o
número de judeus no início do século I chegava a 40.000; mais tarde Roma chegou
a ter mais judeus do que Jerusalém. Há menção de pelo menos treze sinagogas na
Roma antiga. Todas cultivavam laços estreitos com a pátria. Quantias
consideráveis fluíam para a manutenção do templo amado em Jerusalém.
Como
foi que uma comunidade judaica tão grande se formou em Roma? Em primeiro lugar,
muitos judeus tinham sido levados como escravos de guerra para lá. Com
frequência eram libertos em pouco tempo, porque insistiam teimosamente em
guardar o sábado. Ou sua liberdade era comprada pelos correligionários. Muitos
permaneceram em Roma. Outros eram levados por sua competência empresarial para
este centro comercial de primeira grandeza, e ainda outros por seu fervor
missionário. Em Mt 23.15 Jesus lhes concede: “Rodeais o mar e a terra para
fazer um prosélito”. Por último pesava a favor dos judeus seu amor pelas
crianças, promovido pela lei de Moisés. O abandono de crianças, a famosa chaga
da Antiguidade, entre eles era malvisto.
Quando
Herodes o Grande provou ser um apoio confiável dos interesses romanos no
Oriente do Império, a influência da comunidade judaica junto à corte cresceu.
Disto resultaram alguns belos privilégios: os judeus podiam guardar seu sábado,
eram isentos do serviço militar e gozavam de liberdades de reunião especiais.
Suas relações com Roma em certas épocas eram tão boas que em Jo 19.12 eles
puderam ameaçar Pilatos: “Se soltas a este, não és amigo de César”.
O
movimento nascente de cristãos tirou proveito desta generosidade para com os
judeus, pois para os de fora eles não passavam de uma questão judaica interna.
Por isso a igreja pôde instalar-se também em Roma, numa época em que as
autoridades agiam com rigor contra a introdução de novas religiões.
.
e. A igreja em Roma
Nossa
definição de que o evangelho de Marcos era dirigido aos cristãos romanos não
deve ser muito estreita. Certamente também a Itália como província circundante
estava em vista, talvez todos os cristãos gentios do Ocidente. Mesmo assim, o
centro das atenções era a capital.
Hengel
(Geschichtsschreibung, p 91) vê motivos para imaginar o início do evangelho em
Roma entre os anos 37 e 41. Judeus convertidos em Jerusalém vieram para a
capital e desenvolveram seu trabalho missionário entre seus conterrâneos. Uma
informação um pouco mais segura temos do escritor romano Suetônio. Ele conta de
tumultos frequentes entre os judeus na época do imperador Cláudio (41-54),
incitados por um tal de “Chrestos”, o que pode ser uma distorção de “Cristo”.
Os romanos podem ter confundido o nome “Cristo”, incomum para os seus ouvidos,
com o nome próprio Chrestos, bastante frequente entre eles. Nos debates
internos entre judeus e cristãos a discussão sobre Cristo deve ter sido tão
acalorada e decisiva, que os de fora foram levados a crer que um homem com este
nome estava entre eles. Estes acontecimentos levaram à expulsão dos judeus
inquietos, parece que em especial dos judeus cristãos (At 18.2), no ano 49.
Entretanto, como At 28.15 pressupõe, eles logo puderam voltar, contudo
desenvolvendo-se separados da sinagoga. Os cristãos ainda não era suspeitos na
corte, pois Paulo pôde apelar com otimismo para o imperador no ano 55,
esperando dele um processo justo (At 25.11; 28.30). No ano 60 ele parece ter
sido liberto.
Depois
do martírio do irmão do Senhor, Tiago, no ano 62 em Jerusalém, a primeira
igreja começa a abandonar a cidade passo a passo. Em consequência disto, Pedro
chega a Roma, “Babilônia”, por volta do ano 63, onde Marcos é seu auxiliar (1Pe
5.13). O período seguinte o aproximou também mais uma vez bastante de Paulo. A
1ª carta de Clemente (escrita nos anos 90), registra o martírio conjunto dos
dois apóstolos em Roma. Com bastante certeza, a morte deles está ligada aos
acontecimentos que sucederam ao incêndio da capital no ano 64, pois de outra
perseguição naqueles anos não se tem notícia. O imperador Nero foi acusado de
ser o responsável pela catástrofe, e transferiu esta culpa para os cristãos.
Ele conseguiu desviar a ira do povo para esta religião nova e ainda estranha.
Tácito e 1Clemente narram como mulheres cristãs eram jogadas na arena para
serem pisoteadas por touros selvagens, como as vítimas eram mortas por cães
raivosos e incendiadas em fogueiras para diversão do povo nos parques do monte
Vaticano.
Como
os judeus saíram ilesos, a separação dos dois grupos nesta ocasião já deve ter
sido de domínio público. Para isto podem ter contribuído outros fatores. Antes
de tudo, havia o interesse e esforço dos judeus de fazer com que estes cristãos
não fossem mais considerados iguais a eles. Além disso, parece que entre os
cristãos se manifestaram tendências radicais, senão Paulo não teria insistido
tanto, em sua carta escrita mais ou menos no ano 57, na lealdade para com as
autoridades e no pagamento dos impostos (Rm 13.1-7). Se a carta aos filipenses
provém do cativeiro em Roma, então o evangelho já tinha penetrado há muito nos
círculos imperiais (Fp 4.22), de modo que estes tinham informações de primeira
mão de que os cristãos eram um movimento à parte.
Pressupondo
que muitos detalhes de notícias posteriores já podiam ser delineados em anos
anteriores, podemos caracterizar a igreja em Roma na época de Marcos com seis
pontos:
1.
Ela era uma das igrejas mais antigas e ricas em tradições do Império, onde o
evangelho era antes algo costumeiro do que desconhecido;
2.
Tácito confirma a força numérica da igreja. Além da imigração que uma capital
sempre experimenta, fazia-se muito trabalho missionário e conseguiam-se adeptos
em famílias influentes, tanto que mais tarde Inácio temia que os irmãos em Roma
poderiam impedir o martírio que ele desejava;
3.
Os cristãos em Roma tinham adquirido uma posição de preeminência entre as
igrejas do Império. Paulo batera à porta, obsequioso (Rm 1.8; 16.16), Pedro
tinha atuado ali (1Pe 5.13), cartas importantes eram dirigidas a eles: as de
Paulo, aos Hebreus e de Inácio, mais tarde. Por volta de 96, o bispo Clemente
de Roma procurou, com responsabilidade fraternal, apaziguar com uma carta o
conflito em Corinto;
4.
A característica da igreja era gentia. Paulo já teve de advertir a pretensa
superioridade diante da minoria judaica (Rm 11.17-24; cap 14 e 15);
5.
Em Roma vivia uma comunidade de mártires, experiente no sofrimento. A
deportação sob Cláudio e especialmente as vítimas recentes do imperador Nero
ainda estavam vivas na memória. A Guerra Judaica estava em pleno andamento. O
ressentimento dos romanos com os judeus em todo o Império não poderia ficar sem
efeitos para a causa cristã. Novas nuvens escuras surgiam no horizonte;
6. Com o desaparecimento das autoridades originais e das primeiras
testemunhas, houve uma mudança de gerações. Em vista disto, Marcos interveio e
garantiu à igreja a tradição de Jesus. Nós o incluímos entre os “homens da
parte de Deus”, que “falaram”, “movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21).
Paz! Até a próxima postagem.
Referências
Bibliográficas; COMENTÁRIO ESPERANÇA. Autor Adolf Pohl Editora Evangélica Esperança
Prof° Euler lopes
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