quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O Evangelho de Marcos

Lugar de escrita e primeiros leitores

a. A tradição
O livro não menciona diretamente nenhum lugar de composição, mas já ouvimos que a tradição quanto a autor e destinatários aponta inconteste para Roma. Só uma voz tardia e isolada propõe Alexandria no Egito. Supunha-se uma atuação de Marcos no Egito (cf 2e). Disto Crisóstomo, por volta de 390, parece ter concluído inadvertidamente que Marcos também compôs ali seu evangelho. Portanto, ficamos com Roma, já que vimos que o testemunho interno do livro não se opõe a isto (cf 2d).

b. Suposições mais recentes
Na medida em que a pesquisa atual não segue a tradição, ela deixa esta questão em aberto (Bornkamm) ou tende a imaginar alguma cidade do Oriente do Império como lugar de escrita. (Kümmerl (p 55) acha que a composição em uma cidade “do Oriente é muito provável”. Schmithals (p 61): “… antes no Oriente”. Schreiber se decide pela Síria. Pontos de referência concretos para estas afirmações inexistem. Marxsen, um célebre pesquisador de Marcos, arriscou-se bastante nesta questão em 1959 e sugeriu a redação na Galiléia, sem, porém, angariar apoio. Que sentido, então, teriam esclarecimentos como o de 7.3s? À redação no contexto aramaico já se opõe a tradução de termos para o grego ou até para o latim. De qualquer forma já é estranho que o registro da tradição de Jesus se mostrasse necessária primeiro na Palestina. Com certeza ali as lembranças pessoais de Jesus eram mais intensas, e a tradição oral bem mais desenvolvida do que na distante Roma pagã.
Portanto, tudo favorece a tradição antiga. “Não há nenhum argumento sólido contra a tradição que diz que o evangelho foi escrito em Roma”, dizia Harnack já no começo do século. Pesch descobre, duas gerações de pesquisadores depois: “Não há nada contra a origem romana do evangelho de Marcos”.

c. A situação geral na Roma do século I
Quando o imperador Augusto morreu no começo do século (ano 14), ele tinha deixado Roma esplêndida. Ele “embelezou tanto a capital, que podia realmente gabar-se de ter encontrado uma cidade de barro e feito dela uma cidade de mármore”, relata um historiador romano.
A cidade, de um milhão de habitantes, hospedava um misto colorido de povos, línguas, culturas e religiões. O empurra-empurra nas ruas era tanto que só se permitia o tráfego de carroças à noite. O porto de Roma, Óstia, tornou-se o centro do comércio mundial. O panorama da cidade estava semeado de construções públicas de primeira. As casas particulares não ficavam para trás. Nas casas de banhos dos patrícios, a água corria de canos de prata para banheiras de mármore, espelhos de metal enfeitavam as paredes, instalações de ar quente aqueciam o ambiente. As paredes das residências estavam cobertas de tapeçarias caras, os assoalhos de mosaicos, os tetos de lambris. O desperdício nos banquetes praticamente não tinha limites. Não faz sentido nem mesmo começar a alistar o que havia de pratos exóticos. Providenciava-se música ao vivo para as refeições, e serenatas. Havia vezes em que flores choviam do teto, outras em que dançarinas se apresentavam.
É claro que tudo isto tinha seu lado escuro: as favelas dos pobres, sem os quais esta civilização não poderia existir, e os navios, impulsionados por escravos cheios de desespero e ódio, que diariamente reabasteciam os portos de produtos. O retrato em cores berrantes da derrocada moral do século I temos graças ao escritor romano Tácito: crise econômica, corrupção, anarquia total, apodrecimento da sociedade e um clima geral de decadência. Todos conhecemos a expressão de perplexidade: “Isto aqui parece a Roma antiga!”
A ética do trabalho estava ausente quase de todo. Milhares viviam de subsídios do Estado. Durante o dia matavam o tempo. O ponto alto da sua existência triste era a vida noturna. Iam para orgias com a intenção de se embebedarem. O resultado geralmente era um carnaval absurdo pelas ruas noturnas, farras em bordéis, cenas de ciúmes, brigas e ressacas. Assim Roma se encaminhava inconscientemente para o dia do juízo de Deus. Contra este pano de fundo pode-se ler p. ex. Rm 13.11-14: “Digo isto a vós outros que conheceis o tempo: já é hora de vos despertardes do sono; porque a nossa salvação está, agora, mais perto do quando no princípio cremos. Vai alta a noite, e vem chegando o dia. Deixemos, pois, as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz. Andemos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo.” Com uma força de irradiação impressionante, como um sol de graça, verdade e justiça, Cristo tinha nascido no horizonte destas pessoas. Principalmente para esta igreja é que Marcos também escreve.

d. A comunidade judaica em Roma
Tratamos da comunidade judaica porque ela, como em todo o Império, faz parte do contexto histórico anterior à igreja.
Na Bíblia lemos já em At 2.10 que havia judeus morando em Roma. A informação mais antiga sobre vida judaica na capital remonta ao ano 139 a.C. Calcula-se que o número de judeus no início do século I chegava a 40.000; mais tarde Roma chegou a ter mais judeus do que Jerusalém. Há menção de pelo menos treze sinagogas na Roma antiga. Todas cultivavam laços estreitos com a pátria. Quantias consideráveis fluíam para a manutenção do templo amado em Jerusalém.
Como foi que uma comunidade judaica tão grande se formou em Roma? Em primeiro lugar, muitos judeus tinham sido levados como escravos de guerra para lá. Com frequência eram libertos em pouco tempo, porque insistiam teimosamente em guardar o sábado. Ou sua liberdade era comprada pelos correligionários. Muitos permaneceram em Roma. Outros eram levados por sua competência empresarial para este centro comercial de primeira grandeza, e ainda outros por seu fervor missionário. Em Mt 23.15 Jesus lhes concede: “Rodeais o mar e a terra para fazer um prosélito”. Por último pesava a favor dos judeus seu amor pelas crianças, promovido pela lei de Moisés. O abandono de crianças, a famosa chaga da Antiguidade, entre eles era malvisto.
Quando Herodes o Grande provou ser um apoio confiável dos interesses romanos no Oriente do Império, a influência da comunidade judaica junto à corte cresceu. Disto resultaram alguns belos privilégios: os judeus podiam guardar seu sábado, eram isentos do serviço militar e gozavam de liberdades de reunião especiais. Suas relações com Roma em certas épocas eram tão boas que em Jo 19.12 eles puderam ameaçar Pilatos: “Se soltas a este, não és amigo de César”.
O movimento nascente de cristãos tirou proveito desta generosidade para com os judeus, pois para os de fora eles não passavam de uma questão judaica interna. Por isso a igreja pôde instalar-se também em Roma, numa época em que as autoridades agiam com rigor contra a introdução de novas religiões.
.
e. A igreja em Roma
Nossa definição de que o evangelho de Marcos era dirigido aos cristãos romanos não deve ser muito estreita. Certamente também a Itália como província circundante estava em vista, talvez todos os cristãos gentios do Ocidente. Mesmo assim, o centro das atenções era a capital.
Hengel (Geschichtsschreibung, p 91) vê motivos para imaginar o início do evangelho em Roma entre os anos 37 e 41. Judeus convertidos em Jerusalém vieram para a capital e desenvolveram seu trabalho missionário entre seus conterrâneos. Uma informação um pouco mais segura temos do escritor romano Suetônio. Ele conta de tumultos frequentes entre os judeus na época do imperador Cláudio (41-54), incitados por um tal de “Chrestos”, o que pode ser uma distorção de “Cristo”. Os romanos podem ter confundido o nome “Cristo”, incomum para os seus ouvidos, com o nome próprio Chrestos, bastante frequente entre eles. Nos debates internos entre judeus e cristãos a discussão sobre Cristo deve ter sido tão acalorada e decisiva, que os de fora foram levados a crer que um homem com este nome estava entre eles. Estes acontecimentos levaram à expulsão dos judeus inquietos, parece que em especial dos judeus cristãos (At 18.2), no ano 49. Entretanto, como At 28.15 pressupõe, eles logo puderam voltar, contudo desenvolvendo-se separados da sinagoga. Os cristãos ainda não era suspeitos na corte, pois Paulo pôde apelar com otimismo para o imperador no ano 55, esperando dele um processo justo (At 25.11; 28.30). No ano 60 ele parece ter sido liberto.
Depois do martírio do irmão do Senhor, Tiago, no ano 62 em Jerusalém, a primeira igreja começa a abandonar a cidade passo a passo. Em consequência disto, Pedro chega a Roma, “Babilônia”, por volta do ano 63, onde Marcos é seu auxiliar (1Pe 5.13). O período seguinte o aproximou também mais uma vez bastante de Paulo. A 1ª carta de Clemente (escrita nos anos 90), registra o martírio conjunto dos dois apóstolos em Roma. Com bastante certeza, a morte deles está ligada aos acontecimentos que sucederam ao incêndio da capital no ano 64, pois de outra perseguição naqueles anos não se tem notícia. O imperador Nero foi acusado de ser o responsável pela catástrofe, e transferiu esta culpa para os cristãos. Ele conseguiu desviar a ira do povo para esta religião nova e ainda estranha. Tácito e 1Clemente narram como mulheres cristãs eram jogadas na arena para serem pisoteadas por touros selvagens, como as vítimas eram mortas por cães raivosos e incendiadas em fogueiras para diversão do povo nos parques do monte Vaticano.
Como os judeus saíram ilesos, a separação dos dois grupos nesta ocasião já deve ter sido de domínio público. Para isto podem ter contribuído outros fatores. Antes de tudo, havia o interesse e esforço dos judeus de fazer com que estes cristãos não fossem mais considerados iguais a eles. Além disso, parece que entre os cristãos se manifestaram tendências radicais, senão Paulo não teria insistido tanto, em sua carta escrita mais ou menos no ano 57, na lealdade para com as autoridades e no pagamento dos impostos (Rm 13.1-7). Se a carta aos filipenses provém do cativeiro em Roma, então o evangelho já tinha penetrado há muito nos círculos imperiais (Fp 4.22), de modo que estes tinham informações de primeira mão de que os cristãos eram um movimento à parte.
Pressupondo que muitos detalhes de notícias posteriores já podiam ser delineados em anos anteriores, podemos caracterizar a igreja em Roma na época de Marcos com seis pontos:
1. Ela era uma das igrejas mais antigas e ricas em tradições do Império, onde o evangelho era antes algo costumeiro do que desconhecido;
2. Tácito confirma a força numérica da igreja. Além da imigração que uma capital sempre experimenta, fazia-se muito trabalho missionário e conseguiam-se adeptos em famílias influentes, tanto que mais tarde Inácio temia que os irmãos em Roma poderiam impedir o martírio que ele desejava;
3. Os cristãos em Roma tinham adquirido uma posição de preeminência entre as igrejas do Império. Paulo batera à porta, obsequioso (Rm 1.8; 16.16), Pedro tinha atuado ali (1Pe 5.13), cartas importantes eram dirigidas a eles: as de Paulo, aos Hebreus e de Inácio, mais tarde. Por volta de 96, o bispo Clemente de Roma procurou, com responsabilidade fraternal, apaziguar com uma carta o conflito em Corinto;
4. A característica da igreja era gentia. Paulo já teve de advertir a pretensa superioridade diante da minoria judaica (Rm 11.17-24; cap 14 e 15);
5. Em Roma vivia uma comunidade de mártires, experiente no sofrimento. A deportação sob Cláudio e especialmente as vítimas recentes do imperador Nero ainda estavam vivas na memória. A Guerra Judaica estava em pleno andamento. O ressentimento dos romanos com os judeus em todo o Império não poderia ficar sem efeitos para a causa cristã. Novas nuvens escuras surgiam no horizonte;
6. Com o desaparecimento das autoridades originais e das primeiras testemunhas, houve uma mudança de gerações. Em vista disto, Marcos interveio e garantiu à igreja a tradição de Jesus. Nós o incluímos entre os “homens da parte de Deus”, que “falaram”, “movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21).
Paz! Até a próxima postagem.


Referências Bibliográficas; COMENTÁRIO ESPERANÇA.  Autor  Adolf  Pohl Editora Evangélica Esperança

Prof°  Euler lopes

Nenhum comentário:

Postar um comentário