domingo, 26 de janeiro de 2014

O Evangelho de Marcos


Data de composição

a. O testemunho do próprio livro
Não faltaram pesquisadores em tempos recentes que dataram o evangelho de Marcos até no século II, mas a grande maioria das indicações gravita em torno do ano 70, quando aconteceu a destruição de Jerusalém e seu templo na guerra judaico-romana. Esta guerra começou no ano 66 e na verdade só terminou em 73, com a queda da fortaleza de Massada. Nas tentativas de datação, geralmente a questão é o quanto o cap 13 nos indica. Ali Jesus prevê o fim do templo, como castigo divino iminente.
Quem declara a ideia da profecia genuína como carente de base, de qualquer forma precisa colocar o livro depois do ano 70. Neste caso a predição de Jesus é vaticinium ex eventu, isto é, só uma suposta profecia de Jesus, que foi colocada em sua boca depois de acontecida a catástrofe. Todavia, também contando com a profecia autêntica, pode-se chegar a uma data posterior a 70, caso se acredite que a profecia foi transmitida em uma forma na qual a recordação do cumprimento recém-acontecido reverbera. Qual o sentido p. ex. da intervenção “quem lê entenda” em 13.14? O sinal para a fuga, ou seja, o “abominável da desolação”, poderia já fazer parte do passado, e a menção é uma lembrança de todas as circunstâncias terríveis. A intenção é que o leitor tenha em mente, emocionado, a profecia com seu cumprimento exato.
A outra alternativa, porém, também é plausível: conforme as notícias mais recentes – era necessário contar com uma média de dois meses para a entrega de uma carta de Jerusalém em Roma, naquela época (Blinzler, p 272s) – a situação “abominável” prevista por Jesus estava tomando forma. Com isto estava dado o sinal da fuga para os irmãos em Jerusalém. A pedra começara a rolar, e o fim do judaísmo centrado no templo estava à mão. O leitor, que vivia neste período carregado de crises, deveria levar em conta que Jesus tinha anunciado tudo isto há 40 anos.
Na questão da data também entra em consideração a pergunta se a palavra sobre a destruição do templo em 13.2 podia ser transmitida de modo genérico e sem comentários, como se o cumprimento tivesse ocorrido recentemente, e o quadro resultante do fim estava diante dos olhos. A idéia é que o texto deveria sugerir isto. Pergunto: Isto é mandatório? Talvez tenhamos uma impressão errônea da ética de tradição de um Marcos que segue com disciplina a sua fonte? (cf 8a).
Pressentimos que as tentativas de ouvir o testemunho do próprio livro continuarão, e provavelmente jamais chegarão a conclusões indubitáveis. Uma visão panorâmica sobre as respostas mais recentes mostra que Wikenhauser, Schmid, G. Haufe, Schweizer, Grässer, Lohse e Riesner datam o livro antes de 70, Kümmel deixa a questão em aberto e Grundmann, Pesch, Gnilka e Schmithals se decidem por uma época depois de 70.

b. A voz da tradição
De acordo com a observação de Papias, o livro não pode ter sido escrito antes do ano 64, porque – até onde se pode ver – a morte de Pedro é pressuposta. Marcos deve ter começado logo seu trabalho, pois exatamente a morte do apóstolo lhe serviu de motivação. Por outro lado, motivação, decisão, pesquisa e execução não devem ser concentrados em poucos meses. Pelo meu entendimento de 13.14 (cf comentário) eu dato a fase final por volta de 67-68.

A estrutura do livro

a. A divisão geográfica em três partes
Pelo visto havia um fio condutor para as histórias de Jesus, originário de Jerusalém, que p. ex. também Pedro levou para o trabalho missionário. Este esboço muito simples, que p. ex. não leva em consideração que Jesus esteve várias vezes em Jerusalém, foi seguido também por Marcos:
Batismo, pregação e curas na Galiléia e nas regiões adjacentes At 10.36-38; Mc 1–9
Pregação na Judéia e em Jerusalém At 10.39a; Mc 10–13
Paixão, morte e ressurreição At 10.39b,40; Mc 14–16
b. A divisão cristológica em duas partes
Todos os expositores perceberam que este evangelho é dividido ao meio por um corte profundo. Estas duas partes se sobrepõem à divisão anterior em três partes. O corte em questão é a confissão de Pedro, que faz com que a 1ª parte vá até 8.26 e a 2ª comece em 8.27. A partir de algumas indicações do livro, queremos mostrar que se trata de um ponto de transição importante em vários sentidos.
Em primeiro lugar, percebe-se uma mudança geográfica. Os movimentos dispersivos do Senhor alcançaram seu ponto mais setentrional. Daqui em diante, seu caminho o conduz claramente para o sul, para Jerusalém. Ao mesmo tempo, a narrativa muda o enfoque dos milagres de Jesus para a instrução dos discípulos. A 1ª parte tinha quase a metade ocupada com milagre após milagre; a 2ª parte só registra três atos de poder, mas relatados do ponto de vista do ensino (9.14-29; 10.46-51 e 11.12-14,20-25). Em vez disto, a instrução dos discípulos passa para o primeiro plano (8.31–9.1; 9.9-13,28,29,30-32,33-50; 10.10-12,13-16, 23-31,35-45; 11.20-26; 13.1-37). Até ali, com exceção do cap 4, só se falou do ensino sem mencionar o conteúdo. Agora isto entra no lugar dos muitos milagres que Jesus fez: o grande milagre, superior a qualquer outro, que é ele mesmo.
O segredo messiânico é desvendado gradativamente. A mudança já se vê em que, exceto na introdução do livro em 1.1, só a partir de agora aparece o título “Cristo” (8.29; 9.41; 12.35; 13.21; 14.61; 15.32). A este se juntam outros títulos com o mesmo sentido. Na 1ª parte, o mistério da pessoa de Jesus já deixava todo mundo curioso (1.22,27; 3.21,22,30; 4.41; 6.2,14s; 8.11), mas Jesus retinha a resposta. A voz do céu o identificou, mas só dirigindo-se diretamente a ele (1.11: “Tu”, contra 9.7: “Este”). Os demônios o conhecem, mas recebem a ordem de guardar silêncio (1.25,34; 3.12; 5.6-8). Milagres poderosos deixam desconfiar quem ele é, mas os presentes recebem a ordem de silêncio como os demônios (5.43; 1.44a; 7.36; 8.26). É importante que se diga que eles não deviam silenciar sobre os milagres, pois estes eram realizados totalmente em público (1.33s; 2.10; 3.3; 5.30), mas sobre sua identidade, que certos milagres esboçavam. Sendo assim, o povo imaginava: ele é um blasfemador (2.7), um lunático (3.21), um possesso (3.22,30), um profeta (6.14,15), etc. Os discípulos também não entendiam (6.52, 8.17s). A 2ª parte, contudo, traz um quadro diferente. Em primeiro lugar, Jesus é confessado corretamente como Cristo pelo grupo dos discípulos (8.29; cf 9.7), depois pelos peregrinos (10.47-49), na entrada triunfal (11.9,10), diante do Sinédrio (14.61s), de Pilatos (15.2) e, finalmente, perante todo o Israel (15.9,12,26,32,39). Com a aproximação da cruz, a confissão se torna cada vez mais franca; depois da morte, bem aberta. A esta altura os mal-entendidos sobre a qualidade do seu messianismo estão fora de questão.
O esclarecimento do mistério messiânico, portanto, anda em paralelo com a formação do mistério da paixão. A 1ª parte já indicou veladamente o sofrimento de Cristo (2.7,20; 3.6 e as parábolas). A partir de 8.31 “ele expunha isto claramente” (v 32), como em 8.31; 9.12,31; 10.33s,45; 12.8; 14.21,22-24,41. O mistério da paixão está ligado principalmente ao título de Filho do Homem. Das catorze passagens com este título, doze se encontram na 2ª parte. O mistério messiânico é substituído pelo mistério do Filho do Homem. Por esta razão, apesar de o confessarem como Messias, os discípulos continuam sem entender. Eles se parecem com o cego curado parcialmente em 8.24s, que já pode ver, mas não com precisão. Pedro ameaça (8.32b) e nega (14.30) este Messias, Judas o entrega (14.18), todos fogem (14.27) e o abandonam (14.50), de modo que ele fica totalmente só no sofrimento.
Assim como o mistério messiânico da 1ª parte é desvendado na 2ª, o mistério do Filho do Homem é revelado na ressurreição. Isto o Senhor anunciou em 9.9. Em 16.7, a nova comunidade do ressurreto se forma. O comandante ao pé da cruz é testemunha (15.39).

 Traços característicos da mensagem do livro

a. Nota prévia: teologia marquínica?
Quase todos os comentadores mais recentes sentem-se obrigados a pesquisar a questão da teologia própria de Marcos. Todavia, é preciso tomar consciência da situação do evangelista. Ela é totalmente diferente da de Paulo ao redigir a carta a uma igreja. O missivista apostólico fora provocado a, de certo modo, pregar por carta, aconselhar por carta, mas o evangelista tinha tradição a transmitir. Certamente ele o fez com fé no coração e perfil teológico. Sua tarefa lhe permitia ter sua própria teologia, mas não apresentá-la livremente. Sua prioridade não era proclamar e admoestar, mas preparar as condições para que isto pudesse ser feito. Ele não podia ceder ao desejo de fazer acréscimos pessoais nem de atender às necessidades dos destinatários.
Um exemplo: A igreja em Roma naquela época vivia entre perseguições. Ela tinha martírios atrás de si e à sua frente. Mas não foi por isso que Marcos deu tanto destaque à paixão em seu livro. Ele não poderia ter trazido outra tradição de Jesus a alguma igreja que vivesse sem ser importunada.
A ligação com a situação do autor ou dos destinatários, portanto, não é tão estreita em um evangelho como em uma pregação ou carta. O evangelista tinha de passar ao largo de muitas coisas para confrontar a cristandade com suas bases – narrando-lhe a tradição oficial. É sabido que as narrativas, em princípio, não contam com a existência do ouvinte e o desafio do momento. Elas não são apelos diretos, mesmo que também tragam ao ouvinte um leque de possibilidades.
Temos de nos libertar da ideia de que Marcos se dirigiu aos seus leitores como um pastor ao pregar – e com liberdade de escolher o texto. O evangelho de Marcos não é exatamente um objeto adequado para estabelecer a teologia pessoal do seu autor. Nas pesquisas recentes sua participação é bastante superestimada e ampliada, numa ou noutra direção. A situação um pouco diferente de Mateus e Lucas é indicada no item 3.
Portanto, contentamo-nos e conformamo-nos com os “traços característicos” do livro, sem levantar afirmações sobre que relação cada um deles tem com a teologia pessoal do autor.
b. As boas novas de libertação
Todos os evangelistas são unânimes em que os acontecimentos que eles relatam giram do começo até o fim em torno do “Reino de Deus”, que vem libertar a criação. Eles testemunham um movimento de libertação. A promessa de que Deus volta a ser rei permeia toda a Bíblia. Marcos, porém, ancora seu livro com firmeza em uma passagem específica da Bíblia. Ele dá a este evento do Reino de Deus o título “evangelho”. A relação desta expressão com o Livro da Consolação de Isaías (a partir do cap 40) será mostrada em 1.14,15. Logo no primeiro versículo ele coloca tudo sob a gloriosa palavra: “boas novas” (evangelho = boas novas).
No início da atividade pública de Jesus em 1.14,15, “evangelho” aparece logo duas vezes. Porém, ele também perpassa aquela metade do livro impregnada do tema da paixão (8.35; 10.29; 13.10; 14.9; cf 16.15). A estas oito passagens correspondem só quatro em Mateus; em Lucas falta o substantivo destacado, em João também o verbo relacionado.
c. Um livro de Jesus
Logo no primeiro versículo, Marcos vincula estas boas notícias a um nome próprio, uma pessoa com a qual o evangelho se confunde completamente: “Evangelho de Jesus Cristo”. Isto se destaca novamente do estilo de Mateus. Este liga “evangelho” com uma realidade: “Evangelho do Reino” (4.23; 9.35; 24.14; 26.13 é exceção). Podemos simplificar a diferença entre Mateus e Marcos nestes termos: Mateus traz um “livro sobre Isto”, Marcos um “livro sobre Ele”. O evangelho de Marcos é permeado em toda a sua extensão pela questão da identidade de Jesus: Quem é Jesus (cf 8.29).
Surgem expressões que usam o verbo ser, uma após outra: “Tu és meu Filho amado!” diz a voz do céu, primeiro a ele e depois aos três confidentes (1.11; 9.7). “Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?” perguntam seus discípulos (4.41). “Não é este o carpinteiro, filho de Maria?” acham seus conterrâneos (6.3). Herodes pensa: Este é o Batista, que ressuscitou. Outros: Ele é Elias, que voltou. Ainda outros: É um profeta (6.14s, 8.28). Os demônios confessam, rangendo os dentes: “Tu és o Santo de Deus” ou “Filho de Deus” (1.24; 3.11; 5.7). Seus parentes dizem: “Está fora de si” (3.21), os rabinos: “Ele está possesso” (3.22,30). Pedro confessa: “Tu és o [Messias] Cristo” (8.29). Para Bartimeu e os peregrinos que vão à festa ele é o “Filho de Davi” (10.47; 11.9s; cf 12.35). Até Judas o identifica, à sua maneira: “É esse!” (14.44), enquanto Pedro, para surpresa geral, cai fora e banca o desinformado: “Não conheço esse homem” (14.71). Caifás pergunta oficialmente: “És tu o Cristo?”, e Pilatos: “És tu o rei dos judeus?” (14.61 e 15.2), e recebem a resposta: “Eu o sou”, “Tu o dizes!” Pilatos repete a sua frase sempre de novo, verbalmente e por escrito: ele é “o rei dos judeus” (15.9,12,26), e seus soldados o imitam: “Salve, rei dos judeus” (15.18). Até os membros do conselho superior dizem: “Desça agora da cruz o Cristo, o rei de Israel!” (15.32). Contudo, ele fica lá e morre. Então o comandante ao pé da cruz confessa: “Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus!” (15.39). Na manhã da Páscoa os mensageiros celestiais dizem: “Ele ressuscitou” (16.6).
O que é decisivo é que este livro sobre “Quem é Jesus?” foi escrito para uma igreja antiga (cf 5e). O fato é que não é evidente que Jesus continua sendo Jesus para cristãos comprovados. Como nos são familiares os Jesus fabricados, distorcidos ou nebulosos! Os discípulos precisam, sempre de novo, hoje como antigamente, uma refocalização da sua fé. É este serviço que a tradição de Jesus lhes presta, a começar com este “evangelho de Jesus Cristo” segundo Marcos.
Uma igreja que negligencia a recordação do Jesus terreno, em breve também não terá mais o Cristo verdadeiro de hoje, que é o mesmo ontem e para sempre. Um espírito que não recorda o Cristo de ontem não é um Espírito Santo. Também nisto reside o verdadeiro impulso para a transmissão da tradição de Jesus entre os primeiros cristãos, e para sua conservação definitiva e quádrupla no Novo Testamento.
d. Riqueza de nomes
A resposta à pergunta pela identidade de Jesus é uma relação considerável de títulos. Ele é o Filho do Homem, o Filho de Deus, o Messias ou Rei, o Filho de Davi, o Senhor, o Santo de Deus, o Profeta e Mestre. De certos textos também se pode concluir que ele é o Mensageiro das Boas Novas, o Servo de Deus, o Pastor, o Noivo e o Valente.
Não é plausível que Jesus tenha viajado por toda a região com as maiores aspirações, mas sem títulos apropriados, como quer uma escola de exegese. Todos os títulos teriam sido formados mais tarde pela igreja. Entretanto, se sua entrada em cena causou perturbação e reflexão – e isto certamente foi o caso – então seus contemporâneos devem ter adotado nomes que o identificassem. Ele mesmo, que até a morte tinha plena certeza da sua missão, não deixou esta missão sem sentido e conteúdo para si e as outras pessoas, mas a definiu. Para isso serviam os nomes da esperança de salvação judaica, especialmente do conjunto de esperança do Antigo Testamento. Como toda profecia é fragmentária (1Co 13.9), todos os nomes sofriam uma transformação profunda assim que eram aplicados a Jesus. Mas Jesus não veio para inventar novos vocábulos.
Entre os nomes de Jesus se destacam “Filho do Homem” e “Messias”, e “Filho de Deus” tem uma função diretiva para todo o livro. Todavia, seria errado isolar um destes títulos e inflar a partir dele uma teologia do Filho do Homem ou do Filho de Deus e, quem sabe, até encontrar diferenças entre eles. Pelo contrário, todos formam juntos um único tecido, que em conjunto testifica o mistério da pessoa de Jesus. Aqui transparece o pensamento de que o sentido do nome espelha o conteúdo da pessoa. Quanto mais títulos, maior a glória. Só os deuses de povos primitivos podiam ficar sem nome; o Deus verdadeiro tem muitos nomes.
O fato de os três nomes mais significativos de Jesus – Filho de Deus, Filho do Homem e Messias – receberem destaque em conjunto durante a paixão de Jesus mostra quão pouco eles concorrem entre si. Na cruz, Jesus finalmente é plenamente o Filho (15.39), mas também o Messias (15.26) e, não por último, o Filho do Homem (8.31). Com isto estamos diante da resposta que realmente importa quanto ao significado destes nomes e de quem é este Jesus. Na cruz tudo fica evidente.
e. Um livro da paixão
A partir do século II, surgiram na igreja antiga numerosos “processos de mártires”, que relatavam com reverência o fim dos que tinham morrido por sua fé: sua prisão, interrogatório, tortura e morte. Estas descrições eram usadas para a edificação dos crentes no culto e também eram chamadas de passiones (sofrimentos). Será que nosso evangelho é o “processo de mártir” de Jesus?
Para um leitor desavisado, a impressão poderia ser esta. Ele entra em cena de repente, sem que se diga uma só palavra sobre sua infância, juventude e vida adulta. Já no começo do cap 2 aparece a acusação de blasfêmia, cuja pena é a morte (2.7). No começo do cap 3 sua morte já está decidida (3.6). Na seqüência, um grupo após outro o condena: os parentes (3.21), os teólogos (3.22), o povo (4.12), os gentios (5.17), a cidade natal (6.3), o rei (6.14ss) e os religiosos (7.5). O anúncio da própria morte de Jesus ocupa neste livro a posição central como nenhum outro assunto (8.31; 9.31; 10.33s). Nisto chama a atenção que Jesus usa de três a seis verbos para definir seu sofrimento, enquanto que para a ressurreição ele só usa um. Por último, os dias finais em Jerusalém ocupam um espaço superdimensionado (a partir do cap 11), mais ou menos um terço do livro. A ressurreição é descrita em poucos versículos (16.1-8).
É evidente que Marcos não tinha a intenção de dar o mesmo peso aos diversos aspectos da vida de Jesus. Seu interesse primordial era sua morte, porque ali ficou demonstrado definitivamente – sem contestação por toda a eternidade – quem é Jesus e como é Deus. Ali o segredo da sua pessoa foi revelado, bem como a condição para todos os seus títulos. Em sentido profundo ele já era antes da sua cruz, e continua depois da cruz, “o crucificado” (cf 1Co 2.2) – o Filho de Deus crucificado, o Filho do Homem crucificado e o Messias crucificado. Por isso a famosa conclusão de Martin Kähler em 1892, de que os evangelhos são histórias da paixão com uma introdução mais detalhada, aplica-se especialmente ao evangelho de Marcos.
Mesmo assim, permanece uma diferença essencial com os processos de mártires da igreja antiga. Ela não consiste somente no tom messiânico do relato da crucificação, também não na história da ressurreição, mas exatamente nesta “introdução detalhada”. Introduções não são escritas à toa, antes têm uma tarefa essencial. Elas conduzem o leitor até o ponto de onde ele tem a visão pretendida pelo autor. Em nosso caso se trata de ver a morte do Senhor do ângulo certo, com todo seu alcance e profundidade, com a diferença absoluta de todos os martírios do mundo. Na cruz morreu, para o leitor atento do evangelho de Marcos, não uma folha em branco, não um religioso anônimo, mas o portador das boas notícias de que fala o Livro da Consolação de Isaías, autenticado por palavras e ações. Ele morreu – como se pode ver nos milagres – para nos libertar em nossa existência de corpo, alma e espírito, de modo que sua morte se torna praticamente o cerne da mensagem de boas notícias. “Evangelho” é, a partir de agora, acima de tudo a morte, o sepultamento, a ressurreição e a aparição de Jesus (1Co 15.3-5). E para concluir: Jesus não morreu pela mão de romanos ou judeus, mas o próprio Deus o expôs para que fosse julgado em lugar do mundo todo.
f. Um livro dos discípulos
Uma segunda ênfase se nos apresenta, que, porém, nem por um momento suplanta o tema da paixão, antes o faz sobressair ainda mais. Marcos, em comparação com os outros evangelhos, mostra, com lente de aumento, a relação de Jesus com os discípulos.
Ele coloca a vocação dos discípulos logo no começo da atuação pública de Jesus (1.16-20), como primeiro ato. Dali em diante eles estão quase sempre presentes. Marcos, no entanto, não fala “dos discípulos”, como Mateus e Lucas o fazem geralmente, mas “dos seus discípulos”, e isto até o penúltimo versículo (16.7). Duas vezes ele também diz com destaque: ele “com os doze” (11.11, 14.17), cinco vezes “ele e seus discípulos”, “ele com os seus discípulos” (2.15; 3.7; 8.10,27; 14.14). Quando Jesus quer ficar sozinho, isto é registrado como algo que chamava a atenção. O fato de, no cap 15, ele ter de ficar sozinho, sem os seus discípulos, aparece como uma catástrofe. Portanto, “Jesus e seus discípulos”: este é o quadro que Marcos quer que seus leitores guardem na lembrança. Sem os discípulos dele, não se pode ter o Senhor. O que isto quer dizer?
Chegamos perto da resposta quando notamos que Marcos, no âmbito do grupo maior de discípulos, concentra a atenção nos “doze” (onze vezes, contra oito em Mateus e sete em Lucas). Os trechos em que aparecem os doze estão espalhados por sobre o livro como uma rede (Stock). Diferente do chamado para pregar (veja abaixo), durante o tempo em que Jesus estava com eles o outro motivo de vocação era mais importante para eles: “Para estarem com ele” (3.14, só em Marcos). Eles deviam viver de modo nunca antes visto com Jesus, com o único objetivo de compreender sua identidade. Para isso, Jesus dedicou uma parte considerável do seu tempo e esforço a estas poucas pessoas. Sempre de novo lemos em Marcos que ele os chamou de lado para o treinamento discipular, para que um dia pudessem entrar com força em um debate sobre a sua pessoa. A contraposição em 8.27-30 – os outros/mas vocês – é típica. Só estando com ele em intimidade é que poderiam compreender sua personalidade. Senão, ter-se-iam limitado a um entendimento verbal e intelectual de Jesus, que pode ser adquirido em livros.
É digno de nota que Jesus convocou os doze quando ele já era candidato à morte (3.6!). Estar com ele tinha relação especial, portanto, com seu caminho de sofrimento e a semana da paixão.
Por isso, a convivência com ele se torna tanto mais intensa quanto mais eles se aproximam de Jerusalém (10.32). Cada vez menos ele se ocupa das multidões, dos doentes, possessos ou adversários, cada vez mais só deles. No cap 14, finalmente, fala-se só deles (os doze: v 10,17,20,23; os discípulos no sentido dos doze: v 12,13,14,16,32). Em nenhuma fase ele quer deixá-los, nem por uma hora (14.37).
Entretanto, exatamente no momento para o qual seu relacionamento com Jesus fora planejado e preparado, acontece o rompimento terrível: Jesus morre sozinho. De acordo com 15.40,41, as mulheres representam os doze que estão ausentes. Porém não a ausência pesa contra os discípulos: para sempre a lembrança do grupo deles incluirá que um deles até traiu Jesus, “um dos doze”, como Judas geralmente é chamado. E “todos fugiram”. Uma empregada vincula Pedro mais uma vez com o estar-com-ele (14.67,70). Ele, no entanto, contesta, faz pouco caso. O cap 15, que conta o sofrimento, morte e sepultamento de Jesus, durante 47 versículos não menciona os discípulos nem uma vez. Um silêncio significativo. Ele documenta a ausência daqueles que deveriam estar presentes exatamente ali.
Nossa descrição, porém, ainda está incompleta em um aspecto. Todo o fracasso dos discípulos fora predito por Jesus (3.19; 14.18,27,30,72). Estes anúncios foram duros, mas manifestam uma fidelidade sem limites, que abrange até situações terríveis demais. Ainda que os seus discípulos o recusem totalmente, ele não os rejeita. Paciente ele sofre entre eles e por eles. É nesta hora que sua relação com eles adquire uma força e plenitude que supera tudo, da qual brota um novo estar-com-ele (14.28), na verdade ligado àquele que morreu por eles. De modo que foi a semana da paixão que lhes revelou a identidade dele – contrastando com o pano de fundo da vergonha e culpa deles. Não é de admirar que estes homens testemunhassem mais tarde de modo decisivo que o Senhor foi crucificado por nós.
Com isto chegamos ao segundo motivo do seu chamado: “para pregar” (3.14). O fato de estar com ele e de ele existir para eles não era uma demonstração particular de generosidade. O número doze já os colocava como os novos patriarcas de Israel, o alicerce do povo messiânico renovado e a base da raça humana redimida, que já fora mencionada nos “muitos” de 10.45 e 14.25. Fora para isto que ele os trouxera para si. Por meio deles ele queria estender sua atuação para além do seu contexto e tempo imediato. Eles são o instrumento da sua atuação universal de exaltado, até os confins do mundo habitado.
Por isso eles têm lugar tão destacado no “evangelho de Jesus Cristo”. Onde quer que ele seja anunciado hoje em dia, trata-se do evangelho deles. No Novo Testamento é que ele encontrou sua forma determinante. Este é o contexto de Jesus que o identifica, sua trilha visível, sua caixa de ressonância por excelência. Sempre de novo o poder de Jesus se manifesta a partir deles.
g. Um livro da igreja
Vimos o comissionamento dos doze, que aconteceu uma só vez na história, e, decorrentes dele, muitas outras coisas que são irrepetíveis. Além deste aspecto incomparável, porém, há muitas coisas em que se pode seguir o exemplo deles, em que os doze servem de modelo. Todavia, modelo para quem?
No transcorrer da história da igreja, quem se apossou dos doze foi especialmente a hierarquia eclesiástica. Papas e cardeais se referiam a eles e se diziam sucessores diretos deles. Infelizmente, assim os doze discípulos foram distanciados dos cristãos comuns. Isto quando nenhum outro grupo de discípulos está tão próximo deles como estes doze.
Certamente esta afirmação pode parecer surpreendente. Ela pelo menos não parece óbvia quando nos conscientizamos de que o “cristão comum”, em sua vida exterior, tem pouco em comum com os doze. Diferente deles, ele leva uma vida familiar regular, ligado à casa e ao emprego. Não deveria ele buscar exemplos no círculo maior de seguidores de que Jesus dispunha naquela época nas aldeias e cidades da Palestina? Este círculo mais amplo, que não seguia a Jesus literalmente, pelo menos lhe era submisso e fiel, às vezes até mais do que os doze (p. ex. 15.42-46). Por isso é surpreendente que os primeiros cristãos, ao transmitirem a tradição, cultivaram muito pouco a lembrança destes amigos de Jesus, e deixou que eles em sua maior parte caíssem em esquecimento. Em comparação com seu grande número, são poucos de quem sabemos os nomes, menos ainda de quem se conta uma história completa. Em vez disto, o interesse principal residia no círculo íntimo dos que andavam separados com Jesus. Capítulo após capítulo são eles que ocupam o centro das atenções.
Isto tem um bom motivo. Em outro sentido, muito mais decisivo, são eles que estão mais próximos do crente simples do que aquele círculo mais amplo. Este só tinha contato esporádico com Jesus, enquanto os doze estavam com ele todos os dias e em todos os lugares. Esta é a questão-chave. Foi sobre os cristãos depois da Páscoa que se pronunciou a promessa: Eis que estou com vocês todos os dias, em todos os lugares estou no meio de vocês, tenho contato constante com vocês! Como a comunhão de Jesus conosco não toma a forma de visitas de médico e não está vinculada a certos lugares de romaria, os doze discípulos correspondem muito melhor conosco.
Parece que este é também o conteúdo dos trechos que falam dos doze em Marcos. São eles que fazem com que o livro seja o livro para a igreja, e devem ser interpretados de uma maneira que nos leve a dizer: “É assim comigo!”

Enfim, finalizamos mais um comentário bíblico sobre o Evangelho de Marcos. Que sua pessoa, segue invólucro no cognoscível das Escrituras Sagradas, para livrar-te de todo engano promovido por interpretações “eisegética”, seguida de pressupostos teológicos equivocados, em assuntos que querem dessacralizar a Igreja. Porfiamos por uma verdadeira interpretação “exegética” dos textos Sagrados, para, enfim termos o verdadeiro sentido das palavras que o autor quis expressar.
Paz do Senhor Jesus! Até a próxima postagem.   

Referências Bibliográficas  
Bultmann, R., Die Geschichte der synoptischen Tradition, FRLANT N.F. 12, Göttingen 51961.
Büchsel, Fr., Jesus, Verkündigung und Geschichte, Gütersloh 1947.
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Cullmann, O., Die Christologie des Neuen Testaments, Tübingen 21958.
Cullmann, O., Heil als Geschichte, Heilsgeschichtliche Existenz im Neuen Testament, Tübingen 1965.

Profº Euler Lopes 

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