Data
de composição
a. O testemunho do próprio
livro
Não
faltaram pesquisadores em tempos recentes que dataram o evangelho de Marcos até
no século II, mas a grande maioria das indicações gravita em torno do ano 70,
quando aconteceu a destruição de Jerusalém e seu templo na guerra
judaico-romana. Esta guerra começou no ano 66 e na verdade só terminou em 73,
com a queda da fortaleza de Massada. Nas tentativas de datação, geralmente a
questão é o quanto o cap 13 nos indica. Ali Jesus prevê o fim do templo, como
castigo divino iminente.
Quem
declara a ideia da profecia genuína como carente de base, de qualquer forma
precisa colocar o livro depois do ano 70. Neste caso a predição de Jesus é vaticinium
ex eventu, isto é, só uma suposta profecia de Jesus, que foi colocada em
sua boca depois de acontecida a catástrofe. Todavia, também contando com a
profecia autêntica, pode-se chegar a uma data posterior a 70, caso se acredite
que a profecia foi transmitida em uma forma na qual a recordação do cumprimento
recém-acontecido reverbera. Qual o sentido p. ex. da intervenção “quem lê
entenda” em 13.14? O sinal para a fuga, ou seja, o “abominável da desolação”,
poderia já fazer parte do passado, e a menção é uma lembrança de todas as
circunstâncias terríveis. A intenção é que o leitor tenha em mente, emocionado,
a profecia com seu cumprimento exato.
A
outra alternativa, porém, também é plausível: conforme as notícias mais
recentes – era necessário contar com uma média de dois meses para a entrega de
uma carta de Jerusalém em Roma, naquela época (Blinzler, p 272s) – a situação
“abominável” prevista por Jesus estava tomando forma. Com isto estava dado o
sinal da fuga para os irmãos em Jerusalém. A pedra começara a rolar, e o fim do
judaísmo centrado no templo estava à mão. O leitor, que vivia neste período
carregado de crises, deveria levar em conta que Jesus tinha anunciado tudo isto
há 40 anos.
Na questão da data também entra em consideração a pergunta se
a palavra sobre a destruição do templo em 13.2 podia ser transmitida de modo
genérico e sem comentários, como se o cumprimento tivesse ocorrido
recentemente, e o quadro resultante do fim estava diante dos olhos. A idéia é
que o texto deveria sugerir isto. Pergunto: Isto é mandatório? Talvez tenhamos
uma impressão errônea da ética de tradição de um Marcos que segue com
disciplina a sua fonte? (cf 8a).
Pressentimos
que as tentativas de ouvir o testemunho do próprio livro continuarão, e
provavelmente jamais chegarão a conclusões indubitáveis. Uma visão panorâmica
sobre as respostas mais recentes mostra que Wikenhauser, Schmid, G. Haufe,
Schweizer, Grässer, Lohse e Riesner datam o livro antes de 70, Kümmel deixa a
questão em aberto e Grundmann, Pesch, Gnilka e Schmithals se decidem por uma
época depois de 70.
b. A voz da tradição
De
acordo com a observação de Papias, o livro não pode ter sido escrito antes do
ano 64, porque – até onde se pode ver – a morte de Pedro é pressuposta. Marcos
deve ter começado logo seu trabalho, pois exatamente a morte do apóstolo lhe
serviu de motivação. Por outro lado, motivação, decisão, pesquisa e execução
não devem ser concentrados em poucos meses. Pelo meu entendimento de 13.14 (cf
comentário) eu dato a fase final por volta de 67-68.
A
estrutura do livro
a. A divisão geográfica em
três partes
Pelo
visto havia um fio condutor para as histórias de Jesus, originário de
Jerusalém, que p. ex. também Pedro levou para o trabalho missionário. Este
esboço muito simples, que p. ex. não leva em consideração que Jesus esteve
várias vezes em Jerusalém, foi seguido também por Marcos:
Batismo,
pregação e curas na Galiléia e nas regiões adjacentes At 10.36-38; Mc
1–9
Pregação
na Judéia e em Jerusalém At 10.39a; Mc 10–13
Paixão,
morte e ressurreição At 10.39b,40; Mc 14–16
b. A divisão cristológica em
duas partes
Todos
os expositores perceberam que este evangelho é dividido ao meio por um corte
profundo. Estas duas partes se sobrepõem à divisão anterior em três partes. O
corte em questão é a confissão de Pedro, que faz com que a 1ª parte vá até 8.26
e a 2ª comece em 8.27. A partir de algumas indicações do livro, queremos
mostrar que se trata de um ponto de transição importante em vários sentidos.
Em
primeiro lugar, percebe-se uma mudança geográfica. Os movimentos dispersivos do
Senhor alcançaram seu ponto mais setentrional. Daqui em diante, seu caminho o
conduz claramente para o sul, para Jerusalém. Ao mesmo tempo, a narrativa muda
o enfoque dos milagres de Jesus para a instrução dos discípulos. A 1ª parte
tinha quase a metade ocupada com milagre após milagre; a 2ª parte só registra
três atos de poder, mas relatados do ponto de vista do ensino (9.14-29;
10.46-51 e 11.12-14,20-25). Em vez disto, a instrução dos discípulos passa para
o primeiro plano (8.31–9.1; 9.9-13,28,29,30-32,33-50; 10.10-12,13-16,
23-31,35-45; 11.20-26; 13.1-37). Até ali, com exceção do cap 4, só se falou do
ensino sem mencionar o conteúdo. Agora isto entra no lugar dos muitos milagres
que Jesus fez: o grande milagre, superior a qualquer outro, que é ele mesmo.
O
segredo messiânico é desvendado gradativamente. A mudança já se vê em que,
exceto na introdução do livro em 1.1, só a partir de agora aparece o título
“Cristo” (8.29; 9.41; 12.35; 13.21; 14.61; 15.32). A este se juntam outros
títulos com o mesmo sentido. Na 1ª parte, o mistério da pessoa de Jesus já
deixava todo mundo curioso (1.22,27; 3.21,22,30; 4.41; 6.2,14s; 8.11), mas
Jesus retinha a resposta. A voz do céu o identificou, mas só dirigindo-se
diretamente a ele (1.11: “Tu”, contra 9.7: “Este”). Os demônios o conhecem, mas
recebem a ordem de guardar silêncio (1.25,34; 3.12; 5.6-8). Milagres poderosos
deixam desconfiar quem ele é, mas os presentes recebem a ordem de silêncio como
os demônios (5.43; 1.44a; 7.36; 8.26). É importante que se diga que eles não
deviam silenciar sobre os milagres, pois estes eram realizados totalmente em
público (1.33s; 2.10; 3.3; 5.30), mas sobre sua identidade, que certos milagres
esboçavam. Sendo assim, o povo imaginava: ele é um blasfemador (2.7), um
lunático (3.21), um possesso (3.22,30), um profeta (6.14,15), etc. Os
discípulos também não entendiam (6.52, 8.17s). A 2ª parte, contudo, traz um
quadro diferente. Em primeiro lugar, Jesus é confessado corretamente como
Cristo pelo grupo dos discípulos (8.29; cf 9.7), depois pelos peregrinos
(10.47-49), na entrada triunfal (11.9,10), diante do Sinédrio (14.61s), de
Pilatos (15.2) e, finalmente, perante todo o Israel (15.9,12,26,32,39). Com a
aproximação da cruz, a confissão se torna cada vez mais franca; depois da
morte, bem aberta. A esta altura os mal-entendidos sobre a qualidade do seu
messianismo estão fora de questão.
O esclarecimento do mistério messiânico, portanto, anda em
paralelo com a formação do mistério da paixão. A 1ª parte já indicou
veladamente o sofrimento de Cristo (2.7,20; 3.6 e as parábolas). A partir de
8.31 “ele expunha isto claramente” (v 32), como em 8.31; 9.12,31; 10.33s,45;
12.8; 14.21,22-24,41. O mistério da paixão está ligado principalmente ao título
de Filho do Homem. Das catorze passagens com este título, doze se encontram na
2ª parte. O mistério messiânico é substituído pelo mistério do Filho do Homem.
Por esta razão, apesar de o confessarem como Messias, os discípulos continuam
sem entender. Eles se parecem com o cego curado parcialmente em 8.24s, que já
pode ver, mas não com precisão. Pedro ameaça (8.32b) e nega (14.30) este
Messias, Judas o entrega (14.18), todos fogem (14.27) e o abandonam (14.50), de
modo que ele fica totalmente só no sofrimento.
Assim
como o mistério messiânico da 1ª parte é desvendado na 2ª, o mistério do Filho
do Homem é revelado na ressurreição. Isto o Senhor anunciou em 9.9. Em 16.7, a
nova comunidade do ressurreto se forma. O comandante ao pé da cruz é testemunha
(15.39).
Traços característicos da mensagem do livro
a. Nota prévia: teologia
marquínica?
Quase
todos os comentadores mais recentes sentem-se obrigados a pesquisar a questão
da teologia própria de Marcos. Todavia, é preciso tomar consciência da situação
do evangelista. Ela é totalmente diferente da de Paulo ao redigir a carta a uma
igreja. O missivista apostólico fora provocado a, de certo modo, pregar por
carta, aconselhar por carta, mas o evangelista tinha tradição a transmitir.
Certamente ele o fez com fé no coração e perfil teológico. Sua tarefa lhe
permitia ter sua própria teologia, mas não apresentá-la livremente. Sua
prioridade não era proclamar e admoestar, mas preparar as condições para que
isto pudesse ser feito. Ele não podia ceder ao desejo de fazer acréscimos
pessoais nem de atender às necessidades dos destinatários.
Um
exemplo: A igreja em Roma naquela época vivia entre perseguições. Ela tinha
martírios atrás de si e à sua frente. Mas não foi por isso que Marcos deu tanto
destaque à paixão em seu livro. Ele não poderia ter trazido outra tradição de
Jesus a alguma igreja que vivesse sem ser importunada.
A
ligação com a situação do autor ou dos destinatários, portanto, não é tão
estreita em um evangelho como em uma pregação ou carta. O evangelista tinha de
passar ao largo de muitas coisas para confrontar a cristandade com suas bases –
narrando-lhe a tradição oficial. É sabido que as narrativas, em princípio, não
contam com a existência do ouvinte e o desafio do momento. Elas não são apelos
diretos, mesmo que também tragam ao ouvinte um leque de possibilidades.
Temos
de nos libertar da ideia de que Marcos se dirigiu aos seus leitores como um
pastor ao pregar – e com liberdade de escolher o texto. O evangelho de Marcos
não é exatamente um objeto adequado para estabelecer a teologia pessoal do seu
autor. Nas pesquisas recentes sua participação é bastante superestimada e
ampliada, numa ou noutra direção. A situação um pouco diferente de Mateus e
Lucas é indicada no item 3.
Portanto,
contentamo-nos e conformamo-nos com os “traços característicos” do livro, sem
levantar afirmações sobre que relação cada um deles tem com a teologia pessoal
do autor.
b. As boas novas de
libertação
Todos
os evangelistas são unânimes em que os acontecimentos que eles relatam giram do
começo até o fim em torno do “Reino de Deus”, que vem libertar a criação. Eles
testemunham um movimento de libertação. A promessa de que Deus volta a ser rei
permeia toda a Bíblia. Marcos, porém, ancora seu livro com firmeza em uma
passagem específica da Bíblia. Ele dá a este evento do Reino de Deus o título
“evangelho”. A relação desta expressão com o Livro da Consolação de Isaías (a
partir do cap 40) será mostrada em 1.14,15. Logo no primeiro versículo ele
coloca tudo sob a gloriosa palavra: “boas novas” (evangelho = boas novas).
No
início da atividade pública de Jesus em 1.14,15, “evangelho” aparece logo duas
vezes. Porém, ele também perpassa aquela metade do livro impregnada do tema da
paixão (8.35; 10.29; 13.10; 14.9; cf 16.15). A estas oito passagens
correspondem só quatro em Mateus; em Lucas falta o substantivo destacado, em
João também o verbo relacionado.
c. Um livro de Jesus
Logo
no primeiro versículo, Marcos vincula estas boas notícias a um nome próprio,
uma pessoa com a qual o evangelho se confunde completamente: “Evangelho de
Jesus Cristo”. Isto se destaca novamente do estilo de Mateus. Este liga
“evangelho” com uma realidade: “Evangelho do Reino” (4.23; 9.35; 24.14; 26.13 é
exceção). Podemos simplificar a diferença entre Mateus e Marcos nestes termos:
Mateus traz um “livro sobre Isto”, Marcos um “livro sobre Ele”. O evangelho de
Marcos é permeado em toda a sua extensão pela questão da identidade de Jesus:
Quem é Jesus (cf 8.29).
Surgem
expressões que usam o verbo ser, uma após outra: “Tu és meu Filho amado!” diz a
voz do céu, primeiro a ele e depois aos três confidentes (1.11; 9.7). “Quem é
este que até o vento e o mar lhe obedecem?” perguntam seus discípulos (4.41).
“Não é este o carpinteiro, filho de Maria?” acham seus conterrâneos (6.3).
Herodes pensa: Este é o Batista, que ressuscitou. Outros: Ele é Elias, que
voltou. Ainda outros: É um profeta (6.14s, 8.28). Os demônios confessam,
rangendo os dentes: “Tu és o Santo de Deus” ou “Filho de Deus” (1.24; 3.11;
5.7). Seus parentes dizem: “Está fora de si” (3.21), os rabinos: “Ele está
possesso” (3.22,30). Pedro confessa: “Tu és o [Messias] Cristo” (8.29). Para
Bartimeu e os peregrinos que vão à festa ele é o “Filho de Davi” (10.47; 11.9s;
cf 12.35). Até Judas o identifica, à sua maneira: “É esse!” (14.44), enquanto
Pedro, para surpresa geral, cai fora e banca o desinformado: “Não conheço esse
homem” (14.71). Caifás pergunta oficialmente: “És tu o Cristo?”, e Pilatos: “És
tu o rei dos judeus?” (14.61 e 15.2), e recebem a resposta: “Eu o sou”, “Tu o
dizes!” Pilatos repete a sua frase sempre de novo, verbalmente e por escrito:
ele é “o rei dos judeus” (15.9,12,26), e seus soldados o imitam: “Salve, rei
dos judeus” (15.18). Até os membros do conselho superior dizem: “Desça agora da
cruz o Cristo, o rei de Israel!” (15.32). Contudo, ele fica lá e morre. Então o
comandante ao pé da cruz confessa: “Verdadeiramente, este homem era o Filho de
Deus!” (15.39). Na manhã da Páscoa os mensageiros celestiais dizem: “Ele
ressuscitou” (16.6).
O que
é decisivo é que este livro sobre “Quem é Jesus?” foi escrito para uma igreja
antiga (cf 5e). O fato é que não é evidente que Jesus continua sendo Jesus para
cristãos comprovados. Como nos são familiares os Jesus fabricados, distorcidos
ou nebulosos! Os discípulos precisam, sempre de novo, hoje como antigamente, uma
refocalização da sua fé. É este serviço que a tradição de Jesus lhes presta, a
começar com este “evangelho de Jesus Cristo” segundo Marcos.
Uma
igreja que negligencia a recordação do Jesus terreno, em breve também não terá
mais o Cristo verdadeiro de hoje, que é o mesmo ontem e para sempre. Um
espírito que não recorda o Cristo de ontem não é um Espírito Santo. Também
nisto reside o verdadeiro impulso para a transmissão da tradição de Jesus entre
os primeiros cristãos, e para sua conservação definitiva e quádrupla no Novo
Testamento.
d. Riqueza de nomes
A
resposta à pergunta pela identidade de Jesus é uma relação considerável de
títulos. Ele é o Filho do Homem, o Filho de Deus, o Messias ou Rei, o Filho de
Davi, o Senhor, o Santo de Deus, o Profeta e Mestre. De certos textos também se
pode concluir que ele é o Mensageiro das Boas Novas, o Servo de Deus, o Pastor,
o Noivo e o Valente.
Não é
plausível que Jesus tenha viajado por toda a região com as maiores aspirações,
mas sem títulos apropriados, como quer uma escola de exegese. Todos os títulos
teriam sido formados mais tarde pela igreja. Entretanto, se sua entrada em cena
causou perturbação e reflexão – e isto certamente foi o caso – então seus
contemporâneos devem ter adotado nomes que o identificassem. Ele mesmo, que até
a morte tinha plena certeza da sua missão, não deixou esta missão sem sentido e
conteúdo para si e as outras pessoas, mas a definiu. Para isso serviam os nomes
da esperança de salvação judaica, especialmente do conjunto de esperança do
Antigo Testamento. Como toda profecia é fragmentária (1Co 13.9), todos os nomes
sofriam uma transformação profunda assim que eram aplicados a Jesus. Mas Jesus
não veio para inventar novos vocábulos.
Entre
os nomes de Jesus se destacam “Filho do Homem” e “Messias”, e “Filho de Deus”
tem uma função diretiva para todo o livro. Todavia, seria errado isolar um
destes títulos e inflar a partir dele uma teologia do Filho do Homem ou do
Filho de Deus e, quem sabe, até encontrar diferenças entre eles. Pelo contrário,
todos formam juntos um único tecido, que em conjunto testifica o mistério da
pessoa de Jesus. Aqui transparece o pensamento de que o sentido do nome espelha
o conteúdo da pessoa. Quanto mais títulos, maior a glória. Só os deuses de
povos primitivos podiam ficar sem nome; o Deus verdadeiro tem muitos nomes.
O
fato de os três nomes mais significativos de Jesus – Filho de Deus, Filho do
Homem e Messias – receberem destaque em conjunto durante a paixão de Jesus
mostra quão pouco eles concorrem entre si. Na cruz, Jesus finalmente é
plenamente o Filho (15.39), mas também o Messias (15.26) e, não por último, o
Filho do Homem (8.31). Com isto estamos diante da resposta que realmente
importa quanto ao significado destes nomes e de quem é este Jesus. Na cruz tudo
fica evidente.
e. Um livro da paixão
A
partir do século II, surgiram na igreja antiga numerosos “processos de
mártires”, que relatavam com reverência o fim dos que tinham morrido por sua
fé: sua prisão, interrogatório, tortura e morte. Estas descrições eram usadas
para a edificação dos crentes no culto e também eram chamadas de passiones (sofrimentos).
Será que nosso evangelho é o “processo de mártir” de Jesus?
Para
um leitor desavisado, a impressão poderia ser esta. Ele entra em cena de
repente, sem que se diga uma só palavra sobre sua infância, juventude e vida
adulta. Já no começo do cap 2 aparece a acusação de blasfêmia, cuja pena é a
morte (2.7). No começo do cap 3 sua morte já está decidida (3.6). Na seqüência,
um grupo após outro o condena: os parentes (3.21), os teólogos (3.22), o povo
(4.12), os gentios (5.17), a cidade natal (6.3), o rei (6.14ss) e os religiosos
(7.5). O anúncio da própria morte de Jesus ocupa neste livro a posição central
como nenhum outro assunto (8.31; 9.31; 10.33s). Nisto chama a atenção que Jesus
usa de três a seis verbos para definir seu sofrimento, enquanto que para a
ressurreição ele só usa um. Por último, os dias finais em Jerusalém ocupam um
espaço superdimensionado (a partir do cap 11), mais ou menos um terço do livro.
A ressurreição é descrita em poucos versículos (16.1-8).
É
evidente que Marcos não tinha a intenção de dar o mesmo peso aos diversos
aspectos da vida de Jesus. Seu interesse primordial era sua morte, porque ali
ficou demonstrado definitivamente – sem contestação por toda a eternidade –
quem é Jesus e como é Deus. Ali o segredo da sua pessoa foi revelado, bem como
a condição para todos os seus títulos. Em sentido profundo ele já era antes da
sua cruz, e continua depois da cruz, “o crucificado” (cf 1Co 2.2) – o Filho de
Deus crucificado, o Filho do Homem crucificado e o Messias crucificado. Por
isso a famosa conclusão de Martin Kähler em 1892, de que os evangelhos são
histórias da paixão com uma introdução mais detalhada, aplica-se especialmente
ao evangelho de Marcos.
Mesmo
assim, permanece uma diferença essencial com os processos de mártires da igreja
antiga. Ela não consiste somente no tom messiânico do relato da crucificação,
também não na história da ressurreição, mas exatamente nesta “introdução detalhada”.
Introduções não são escritas à toa, antes têm uma tarefa essencial. Elas
conduzem o leitor até o ponto de onde ele tem a visão pretendida pelo autor. Em
nosso caso se trata de ver a morte do Senhor do ângulo certo, com todo seu
alcance e profundidade, com a diferença absoluta de todos os martírios do
mundo. Na cruz morreu, para o leitor atento do evangelho de Marcos, não uma
folha em branco, não um religioso anônimo, mas o portador das boas notícias de
que fala o Livro da Consolação de Isaías, autenticado por palavras e ações. Ele
morreu – como se pode ver nos milagres – para nos libertar em nossa existência
de corpo, alma e espírito, de modo que sua morte se torna praticamente o cerne
da mensagem de boas notícias. “Evangelho” é, a partir de agora, acima de tudo a
morte, o sepultamento, a ressurreição e a aparição de Jesus (1Co 15.3-5). E
para concluir: Jesus não morreu pela mão de romanos ou judeus, mas o próprio
Deus o expôs para que fosse julgado em lugar do mundo todo.
f. Um livro dos discípulos
Uma
segunda ênfase se nos apresenta, que, porém, nem por um momento suplanta o tema
da paixão, antes o faz sobressair ainda mais. Marcos, em comparação com os
outros evangelhos, mostra, com lente de aumento, a relação de Jesus com os
discípulos.
Ele
coloca a vocação dos discípulos logo no começo da atuação pública de Jesus
(1.16-20), como primeiro ato. Dali em diante eles estão quase sempre presentes.
Marcos, no entanto, não fala “dos discípulos”, como Mateus e Lucas o fazem
geralmente, mas “dos seus discípulos”, e isto até o penúltimo versículo (16.7).
Duas vezes ele também diz com destaque: ele “com os doze” (11.11, 14.17), cinco
vezes “ele e seus discípulos”, “ele com os seus discípulos” (2.15; 3.7;
8.10,27; 14.14). Quando Jesus quer ficar sozinho, isto é registrado como algo
que chamava a atenção. O fato de, no cap 15, ele ter de ficar sozinho, sem os
seus discípulos, aparece como uma catástrofe. Portanto, “Jesus e seus
discípulos”: este é o quadro que Marcos quer que seus leitores guardem na lembrança.
Sem os discípulos dele, não se pode ter o Senhor. O que isto quer dizer?
Chegamos
perto da resposta quando notamos que Marcos, no âmbito do grupo maior de
discípulos, concentra a atenção nos “doze” (onze vezes, contra oito em Mateus e
sete em Lucas). Os trechos em que aparecem os doze estão espalhados por sobre o
livro como uma rede (Stock). Diferente do chamado para pregar (veja abaixo),
durante o tempo em que Jesus estava com eles o outro motivo de vocação era mais
importante para eles: “Para estarem com ele” (3.14, só em Marcos). Eles deviam
viver de modo nunca antes visto com Jesus, com o único objetivo de compreender
sua identidade. Para isso, Jesus dedicou uma parte considerável do seu tempo e
esforço a estas poucas pessoas. Sempre de novo lemos em Marcos que ele os
chamou de lado para o treinamento discipular, para que um dia pudessem entrar
com força em um debate sobre a sua pessoa. A contraposição em 8.27-30 – os
outros/mas vocês – é típica. Só estando com ele em intimidade é que poderiam compreender
sua personalidade. Senão, ter-se-iam limitado a um entendimento verbal e
intelectual de Jesus, que pode ser adquirido em livros.
É
digno de nota que Jesus convocou os doze quando ele já era candidato à morte
(3.6!). Estar com ele tinha relação especial, portanto, com seu caminho de
sofrimento e a semana da paixão.
Por
isso, a convivência com ele se torna tanto mais intensa quanto mais eles se
aproximam de Jerusalém (10.32). Cada vez menos ele se ocupa das multidões, dos
doentes, possessos ou adversários, cada vez mais só deles. No cap 14,
finalmente, fala-se só deles (os doze: v 10,17,20,23; os discípulos no sentido
dos doze: v 12,13,14,16,32). Em nenhuma fase ele quer deixá-los, nem por uma
hora (14.37).
Entretanto,
exatamente no momento para o qual seu relacionamento com Jesus fora planejado e
preparado, acontece o rompimento terrível: Jesus morre sozinho. De acordo com
15.40,41, as mulheres representam os doze que estão ausentes. Porém não a
ausência pesa contra os discípulos: para sempre a lembrança do grupo deles
incluirá que um deles até traiu Jesus, “um dos doze”, como Judas geralmente é
chamado. E “todos fugiram”. Uma empregada vincula Pedro mais uma vez com o
estar-com-ele (14.67,70). Ele, no entanto, contesta, faz pouco caso. O cap 15,
que conta o sofrimento, morte e sepultamento de Jesus, durante 47 versículos
não menciona os discípulos nem uma vez. Um silêncio significativo. Ele
documenta a ausência daqueles que deveriam estar presentes exatamente ali.
Nossa
descrição, porém, ainda está incompleta em um aspecto. Todo o fracasso dos
discípulos fora predito por Jesus (3.19; 14.18,27,30,72). Estes anúncios foram
duros, mas manifestam uma fidelidade sem limites, que abrange até situações
terríveis demais. Ainda que os seus discípulos o recusem totalmente, ele não os
rejeita. Paciente ele sofre entre eles e por eles. É nesta hora que sua relação
com eles adquire uma força e plenitude que supera tudo, da qual brota um novo
estar-com-ele (14.28), na verdade ligado àquele que morreu por eles. De modo
que foi a semana da paixão que lhes revelou a identidade dele – contrastando
com o pano de fundo da vergonha e culpa deles. Não é de admirar que estes
homens testemunhassem mais tarde de modo decisivo que o Senhor foi crucificado
por nós.
Com
isto chegamos ao segundo motivo do seu chamado: “para pregar” (3.14). O fato de
estar com ele e de ele existir para eles não era uma demonstração particular de
generosidade. O número doze já os colocava como os novos patriarcas de Israel,
o alicerce do povo messiânico renovado e a base da raça humana redimida, que já
fora mencionada nos “muitos” de 10.45 e 14.25. Fora para isto que ele os
trouxera para si. Por meio deles ele queria estender sua atuação para além do
seu contexto e tempo imediato. Eles são o instrumento da sua atuação universal
de exaltado, até os confins do mundo habitado.
Por isso eles têm lugar tão destacado no “evangelho de Jesus
Cristo”. Onde quer que ele seja anunciado hoje em dia, trata-se do evangelho deles.
No Novo Testamento é que ele encontrou sua forma determinante. Este é o
contexto de Jesus que o identifica, sua trilha visível, sua caixa de
ressonância por excelência. Sempre de novo o poder de Jesus se manifesta a
partir deles.
g. Um livro da igreja
Vimos
o comissionamento dos doze, que aconteceu uma só vez na história, e,
decorrentes dele, muitas outras coisas que são irrepetíveis. Além deste aspecto
incomparável, porém, há muitas coisas em que se pode seguir o exemplo deles, em
que os doze servem de modelo. Todavia, modelo para quem?
No
transcorrer da história da igreja, quem se apossou dos doze foi especialmente a
hierarquia eclesiástica. Papas e cardeais se referiam a eles e se diziam
sucessores diretos deles. Infelizmente, assim os doze discípulos foram
distanciados dos cristãos comuns. Isto quando nenhum outro grupo de discípulos
está tão próximo deles como estes doze.
Certamente
esta afirmação pode parecer surpreendente. Ela pelo menos não parece óbvia
quando nos conscientizamos de que o “cristão comum”, em sua vida exterior, tem
pouco em comum com os doze. Diferente deles, ele leva uma vida familiar
regular, ligado à casa e ao emprego. Não deveria ele buscar exemplos no círculo
maior de seguidores de que Jesus dispunha naquela época nas aldeias e cidades
da Palestina? Este círculo mais amplo, que não seguia a Jesus literalmente,
pelo menos lhe era submisso e fiel, às vezes até mais do que os doze (p. ex.
15.42-46). Por isso é surpreendente que os primeiros cristãos, ao transmitirem
a tradição, cultivaram muito pouco a lembrança destes amigos de Jesus, e deixou
que eles em sua maior parte caíssem em esquecimento. Em comparação com seu
grande número, são poucos de quem sabemos os nomes, menos ainda de quem se
conta uma história completa. Em vez disto, o interesse principal residia no
círculo íntimo dos que andavam separados com Jesus. Capítulo após capítulo são
eles que ocupam o centro das atenções.
Isto
tem um bom motivo. Em outro sentido, muito mais decisivo, são eles que estão
mais próximos do crente simples do que aquele círculo mais amplo. Este só tinha
contato esporádico com Jesus, enquanto os doze estavam com ele todos os dias e
em todos os lugares. Esta é a questão-chave. Foi sobre os cristãos depois da
Páscoa que se pronunciou a promessa: Eis que estou com vocês todos os dias, em
todos os lugares estou no meio de vocês, tenho contato constante com vocês!
Como a comunhão de Jesus conosco não toma a forma de visitas de médico e não
está vinculada a certos lugares de romaria, os doze discípulos correspondem
muito melhor conosco.
Parece que este é também o conteúdo dos trechos que falam dos
doze em Marcos. São eles que fazem com que o livro seja o livro para a igreja,
e devem ser interpretados de uma maneira que nos leve a dizer: “É assim
comigo!”
Enfim, finalizamos mais um comentário bíblico sobre o Evangelho de Marcos. Que sua pessoa, segue
invólucro no cognoscível das Escrituras Sagradas, para livrar-te de todo engano
promovido por interpretações “eisegética”,
seguida de pressupostos teológicos equivocados, em assuntos que querem dessacralizar
a Igreja. Porfiamos por uma verdadeira interpretação “exegética” dos textos Sagrados,
para, enfim termos o verdadeiro sentido das palavras que o autor quis expressar.
Paz do Senhor Jesus! Até a próxima postagem.
Referências
Bibliográficas
Bultmann, R., Die
Geschichte der synoptischen Tradition, FRLANT N.F. 12, Göttingen 51961.
Büchsel, Fr., Jesus,
Verkündigung und Geschichte, Gütersloh 1947.
Bürgener, K., Die
Auferstehung Jesu Christi von den Toten, Der Versuch einer Osterharmonie,
Berlin 21971.
Conzelmann, H., Grundriss
der Theologie des Neuen Testaments, EEth 2, München 1967.
Conzelmann, H., Theologie
als Schriftauslegung, Aufsätze zum Neuen Testament, BevTH 65, München 1974.
Cullmann, O., Die
Christologie des Neuen Testaments, Tübingen 21958.
Cullmann, O., Heil
als Geschichte, Heilsgeschichtliche Existenz im Neuen Testament, Tübingen 1965.
Profº Euler Lopes
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